quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Meu Querido Amigo Abu

Quando fiz oito anos ganhei de presente de natal um ursinho de pelúcia branco com um lacinho vermelho no pescoço, o nomeei de Abu, pois achei que combinava com seus olhos de botão. Realmente não dá para entender a cabeça de uma criança...
 Naquela noite teve peru, batatas fritas e ervilhas, minha mãe disse que não comeríamos até meu pai chegar, então subi para meu quarto e esperei. Lembro-me de estar brincando com Abu quando ouvi mamãe chorando. Desci as escadas e a vi com o rosto virado para a porta, suas lágrimas pingaram na comida, o que deveria ter a deixado com um gosto salgado. Papai ainda não havia retornado do trabalho. Fiquei na escada observando mamãe por duas horas, já era três da manhã quando ele finalmente chegou, cambaleando. Eu fechei os olhos, Abu foi quem viu tudo.
Eles gritaram, ele bateu na mamãe tanto que ela sangrou; ela tentou se defender, mas ele perfurou seu estomago de tal forma que seu “enchimento” caiu todo. Ele veio até mim, largou a faca no chão, fez carinho no meu rosto com sua mãe suja de sangue e foi embora.
Eu acabei indo para um orfanato, eu e Abu.
Nunca mais vi papai.
Sempre dormia abraçado com meu ursinho, brincávamos praticamente o dia todo, permaneci com ele durante todos os dias, horas e anos que permaneci ali. Quando já tinha dezesseis, estava sentado com Abu no banquinho do pátio, não tinha amigos, sempre falavam que eu era grande demais para brincar com bichos de pelúcia, mas ele não era um bichinho de pelúcia, ele era vivo! Ele conversava comigo todas as noites. Em uma manhã de maio, todos os garotos estavam do lado de fora, estavam removendo o corpo de Jully do poço, uma adolescente. Ela já estava quase fazendo idade para sair do orfanato e pretendia ser modelo. Os policiais levaram o zelador, algemado. Eu fechei os olhos enquanto os bombeiros removiam o corpo pálido e sem vida, Abu viu tudo, tudinho.
Quando fiz 31 anos, comecei a trabalhar num bar. Era noite, tudo o que precisava fazer era servir bebidas, ali fiz alguns amigos, conheci pessoas com problemas de todos os tamanhos. Um dia quando estava indo para casa, um deles pegou uma garrafa e quebrou na porta do bar, cravou no rosto duma bela garota que iria lá às terças e quintas. Fechei os olhos, não gostava de ver esse tipo de coisa, mas Abu viu tudo, desde quando o vidro penetrou na orbita e arrancou o globo ocular da mulher, até o momento que a ambulância chegou para levar o corpo. Deixei meu amigo escondido dentro do casaco...
Esta manhã fui ao psiquiatra, ele me disse para não conversar novamente com Abu, que na verdade as coisas que meu ursinho viu, foram todas presenciadas por mim. Que eu deveria ver “através dos olhos de Abu”. A consulta custou R$ 345,00.
Quando cheguei em casa, removi os olhos de botão do meu ursinho, e abri o zíper atrás de suas costas. Com uma linha e uma agulha costurei os botões em meus olhos, e com uma faca afiada removi meu enchimento e preenchi o espaço vago com o de Abu.
Esta ficando frio, não sinto meu corpo, não vejo nada, não consigo me mover.
Acho que consegui me tornar igual a Abu.
O psiquiatra ficará orgulhoso, talvez papai também.

O que acha, Abu?


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