Quando fiz oito anos
ganhei de presente de natal um ursinho de pelúcia branco com um lacinho
vermelho no pescoço, o nomeei de Abu, pois achei que combinava com seus olhos
de botão. Realmente não dá para entender a cabeça de uma criança...
Naquela noite teve
peru, batatas fritas e ervilhas, minha mãe disse que não comeríamos até meu pai
chegar, então subi para meu quarto e esperei. Lembro-me de estar brincando com
Abu quando ouvi mamãe chorando. Desci as escadas e a vi com o rosto virado para
a porta, suas lágrimas pingaram na comida, o que deveria ter a deixado com um
gosto salgado. Papai ainda não havia retornado do trabalho. Fiquei na escada
observando mamãe por duas horas, já era três da manhã quando ele finalmente
chegou, cambaleando. Eu fechei os olhos, Abu foi quem viu tudo.
Eles gritaram, ele bateu
na mamãe tanto que ela sangrou; ela tentou se defender, mas ele perfurou seu
estomago de tal forma que seu “enchimento” caiu todo. Ele veio até mim, largou
a faca no chão, fez carinho no meu rosto com sua mãe suja de sangue e foi
embora.
Eu acabei indo para um
orfanato, eu e Abu.
Nunca mais vi papai.
Sempre dormia abraçado com
meu ursinho, brincávamos praticamente o dia todo, permaneci com ele durante
todos os dias, horas e anos que permaneci ali. Quando já tinha dezesseis,
estava sentado com Abu no banquinho do pátio, não tinha amigos, sempre falavam
que eu era grande demais para brincar com bichos de pelúcia, mas ele não era um
bichinho de pelúcia, ele era vivo! Ele conversava comigo todas as noites. Em uma
manhã de maio, todos os garotos estavam do lado de fora, estavam removendo o
corpo de Jully do poço, uma adolescente. Ela já estava quase fazendo idade para
sair do orfanato e pretendia ser modelo. Os policiais levaram o zelador,
algemado. Eu fechei os olhos enquanto os bombeiros removiam o corpo pálido e
sem vida, Abu viu tudo, tudinho.
Quando fiz 31 anos,
comecei a trabalhar num bar. Era noite, tudo o que precisava fazer era servir
bebidas, ali fiz alguns amigos, conheci pessoas com problemas de todos os
tamanhos. Um dia quando estava indo para casa, um deles pegou uma garrafa e
quebrou na porta do bar, cravou no rosto duma bela garota que iria lá às terças
e quintas. Fechei os olhos, não gostava de ver esse tipo de coisa, mas Abu viu
tudo, desde quando o vidro penetrou na orbita e arrancou o globo ocular da
mulher, até o momento que a ambulância chegou para levar o corpo. Deixei meu
amigo escondido dentro do casaco...
Esta manhã fui ao
psiquiatra, ele me disse para não conversar novamente com Abu, que na verdade
as coisas que meu ursinho viu, foram todas presenciadas por mim. Que eu deveria
ver “através dos olhos de Abu”. A consulta custou R$ 345,00.
Quando cheguei em casa,
removi os olhos de botão do meu ursinho, e abri o zíper atrás de suas costas.
Com uma linha e uma agulha costurei os botões em meus olhos, e com uma faca
afiada removi meu enchimento e preenchi o espaço vago com o de Abu.
Esta ficando frio, não
sinto meu corpo, não vejo nada, não consigo me mover.
Acho que consegui me
tornar igual a Abu.
O psiquiatra ficará
orgulhoso, talvez papai também.
O que acha, Abu?